As plataformas de streaming chegaram às nossas mãos com diversas promessas: um catálogo variado de filmes e séries, preços acessíveis, sem anúncios e a idealização de acabar com a pirataria. A princípio isso foi um pouco verdade. Com a chegada do streaming da Netflix e sua popularização, era possível por R$ 14,99 por mês ter acesso a uma plataforma que lhe trazia vários conteúdos sem precisar sair de sua preciosa casa e ir até a locadora mais próxima, alugar um único filme (ou três pelo preço de dois), e devolver dois dias depois ou mais dependendo se era dia de promoção ou véspera de fim de semana. Apesar do catálogo ser bem escasso em relação a produção nacional e ser quase que inteiramente composto de produções estadunidenses, era algo promissor.
Se Prometeu entregou o poder do fogo ao ser humano. A Netflix teria, em tese, entregue o poder do consumidor de escolher o que ele deseja assistir e democratizado o acesso ao audiovisual? Era assim que os veículos de mídia e as pessoas tratavam a plataforma na sua vinda para o Brasil. Em uma reportagem da BBC Brasil em 2015, a Netflix é colocada como a empresa com o segredo para “driblar” a pirataria e que surpreendentemente conseguiu fazer o Brasil – que era um refúgio dessa prática –, um case de sucesso. Já em comentários de notícia do UOL sobre a plataforma ter diminuído a pirataria, usuários elogiaram a plataforma sem escrúpulos a plataforma: “Agora que descobriram isso? É barato e muito bom, claro que vai ter menos pirataria”, disse usuário.

Os números acabaram contribuindo para a mitificação desse monopólio que quase se tornou sinônimo de streaming e que fez as pessoas perguntarem com a cara lavada frente a qualquer indicação: “ – Tem na Netflix?”. A pirataria, que tanto foi combatida em operações policiais e que ganhava campanhas que objetivavam despertar pânico – à exemplo da campanha do vendedor de filmes piratas dando o troco para um cliente em balas de munição –, agora parecia se apequenar. Em 2013, 28% dos brasileiros afirmaram “nunca” comprar produtos piratas. Já em 2019, após a chegada também do PrimeVideo e o streaming de música Spotify, esse número cresceu para 45%, segundo a pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) intitulada “Perfil do Consumidor: Consumo pela Internet”. Já o que “às vezes” recorriam caiu de 34% para 23%.
No entanto, essa pesquisa tinha o enfoque nas mídias físicas. E como se sabe, a pirataria evoluiu junto com a internet. O uso de torrents, compartilhamento de links de filmes em redes sociais, aplicativos como o Stremio e até disponibilização de filmes inteiros em sites de pornografia, foram alguns dos caminhos que a pirataria na web tomou.
Mesmo assim, até 2023, a pirataria parecia estar sendo contida e continuava a diminuir. Segundo uma pesquisa da empresa de rastreamento de pirataria Muso e da consultoria Kearney, o acesso a sites de pirataria de filmes, séries e transmissões esportivas caiu em 60% no Brasil de 2018 até 2023. O veículo Torrent Freak, especializado em pirataria e direitos autorais também deu o crédito dessa diminuição às frequentes repressões contra o delito, como a Operação 404, responsável por desligar mais de 600 sites piratas.
A mesma pesquisa da Muso, porém, mostrou um crescimento recente do acesso à sites piratas a partir de 2022, chegando a 141 bilhões de visitantes no ano seguinte, 12% a mais do que o recorde de acessos, que foi registrado em 2019. A visão sobre o streaming acabou perdendo parte da sua imagem ilibada de Prometeu da acessibilidade. Sobretudo depois das principais plataformas implementarem anúncios, aumentarem seus preços e o fim do compartilhamento de contas. O que frustrou muitos dos assinantes das empresas.
A Netflix (pioneira do bloqueio), que antes publicava em sua rede social oficial “amar é compartilhar a senha”, parecia estar querendo aumentar seus lucros impedindo esse mesmo compartilhamento ao cobrar uma taxa extra de R$ 12,90 por usuário e limitar o uso da plataforma a uma só residência. Um usuário do X (naquela época Twitter) comentou sobre o bloqueio: “Que burrada. Muitos só tem porque dividem o valor, muita inocência achar que cada um vai começar a pagar a sua ao invés de largar a Netflix, fora que ainda prejudica quem viaja. Nem print deixam tirar, agora isso, tão implorando pra gente usar piratão”.

Retorno da pirataria
A ideia de que os streamings de alguma forma democratizaram o acesso ao audiovisual – que já era questionado por profissionais do meio –, começou a cair por terra entre o público geral. Hoje, se uma pessoa fosse assinar os quatro principais streamings – Netflix, PrimeVideo, Disney + e HBO Max –, pagaria um total de R$ 98,69 optando pelos planos padrões sem anúncios. Mas se essa pessoa quisesse também ter outras plataformas como a Globoplay, Mubi, Apple +, Crunchyroll e Paramount + esse valor poderia chegar a R$ 382 mensais.
A metáfora do Prometeu usada até aqui não funcionaria mais com a Netflix, mas segundo Lucas Ness, professor de Cinema e pesquisador de pirataria, ela poderia muito bem ser aplicada aos pirateadores. Afinal, ele se encaixa no mito de alguém que rouba o fogo dos deuses, o entrega a comunidade e por esse motivo recebe de volta a fúria dos deuses, sendo acorrentado a uma rocha no Cáucaso, onde todos os dias uma águia vinha devorar seu fígado, que se regenerava a noite para a continuidade do seu castigo eterno.
Hugo Sena* é umas das pessoas que trabalha para trazer esse “fogo divino” à comunidade. Com perfis no X e Bluesky, ele disponibiliza links no Google Drive e em grupos de Telegram de diversos filmes. Divulgando desde clássicos da comédia romântica queer como Nunca Fui Santa (1999) passando por recentes lançamentos brasileiros como Oeste Outra Vez (2025) até os filmes italianos giallos do Dário Argento, Hugo considera que seu trabalho não é uma simples pirataria, mas sim uma forma de resistência cultural. “Com certeza a gente é uma oposição aos streamings. Se você fosse pagar todos, gastaria uma fortuna — e ainda assim muita coisa não está lá”.
O projeto de Sena iniciou quase que de forma acidental no final de 2022, com ele postando filmes slasher de forma despretensiosa. “Acabou que uma dessas postagens começou a viralizar e nisso eu ganhei alguns seguidores que começaram a perguntar sobre outros filmes. Na época já tinham algumas outras páginas de [Google] Drive, mas não eram no mesmo nível que existe hoje”.
Para o dono da página, muitas coisas só conseguem ser assistidas a partir da pirataria, ou por não estarem disponíveis em nenhum streaming ou por questão financeira envolvendo o preço de assinaturas e alugueis. “Minha cinefilia não existiria sem pirataria”, afirma.
A ideia de Hugo vai ao encontro do que o estudante de Cinema David Fernandes*, que explica sem links, torrents, drives e outras plataformas de pirataria, jamais teria acesso a alguns filmes clássicos e independentes. “Você jamais encontraria um filme da Agnès Varda em um serviço de streaming, por exemplo. Se não fosse por essas outras formas de acesso, simplesmente não existiria como entrar em contato com essas obras.”
O estudante ainda afirma que para os alunos na faculdade de Cinema o acesso informal é um recurso bem comum, todavia os docentes parecem não querer falar do assunto, para evitar o endosso da pirataria.
A contradição em estar estudando Cinema e precisar usar da pirataria para acessar certos filmes é algo que passa pela cabeça de David, já que o mesmo reconhece que ficaria frustrado se alguma produção autoral sua, que levou tempo e dinheiro, fosse pirateada.
Prejuízo do autor?
A questão: “– Até que ponto a pirataria prejudica os autores?”, talvez seja um dos grandes tabus do meio do cinema. Muitas pessoas defendem que o consumo de filmes por meio informais prejudica o êxito comercial deste artista – sobretudo os mais independentes. Outras muitas pessoas afirmam que a pirataria permite que as obras sejam mais conhecidas, principalmente por aquelas que não tem como pagar para acessá-las.
O professor Lucas opina que a pirataria, objetivamente, sempre vai ser prejudicial para o mercado. Mas enquanto questão de difusão cultural e social é importante, podendo até funcionar como vitrine para artistas menores. Ness, reconhece inclusive, que já encontrou muitos realizadores felizes ao saberem que algum filme seu está disponível em torrents de outros países.
Mesmo assim, a questão mostra-se complexa, pois ao mesmo tempo que o acesso informal pode divulgar esses realizadores mais undergrounds, muitos artistas têm uma questão ética com a pirataria, sobretudo pelo prejuízo causado à indústria audiovisual. Em pesquisa realizada em 2018, pelo Instituto Ipsos à pedido da Motion Picture Association (MPA), foi identificado que as perdas por causa da pirataria chegam a R$ 4 bilhões por ano.
Ao ser questionado sobre estar prejudicando artistas com seu projeto, Hugo Sena, dono de um perfil que compartilha links de filmes negou que estaria prejudicando os artistas, já que ele não faz isso visando nenhum lucro. “Prejudicar o artista, eu estou prejudicando o Spike Lee que está lá no jogo da NBA dele? Não acho que eu estou prejudicando o artista”, ironiza.
Assim como Hugo, David também corrobora da mesma visão, e acrescenta que não é a pirataria que prejudica os artistas, mas sim os preços exorbitantes dos ingressos de cinema, que deveria ser acessível para todos. “É só pegar o exemplo de quando as redes de cinema fazem promoções de ingressos a R$ 10 e as sessões lotam. O povo brasileiro ama e consome cultura, principalmente se for a nossa”.

Mesmo assim, Hugo reconhece que, no caso de diretores brasileiros que estão iniciando, pode dificultar algumas coisas. Entretanto, relata haver uma consciência por parte das pessoas que pirateiam de deixarem os artistas “encontrarem seu espaço”. “Já aconteceu de um diretor vir pedir para eu tirar um filme do ar, pois na época estava tentando conseguir distribuição pro filme dele. Eu entendi, retirei o filme e até hoje a gente conversa”, afirma.
Para Hugo, os perfis que compartilham os filmes estão mais ajudando os artistas, do que os prejudicando Até porque sempre vão haver pessoas que gostam, podem e preferem ir ao cinema, principalmente pela questão da experiência, pois “nós não somos mais uma morte do cinema, tem coisas piores que estão o matando. A gente só está divulgando”, tenta justificar.
Limiar entre o crime e a acessibilidade
Apesar do debate envolvendo a pirataria como ferramenta de acesso à cultura, ainda no Brasil é considerado crime compartilhar conteúdo pirata.
Do ponto de vista jurídico, não existe o conceito legal de pirataria, estando ela relacionada à prática de contrafação, ou seja, de “reprodução não autorizada” da Lei de Direitos Autorais. Desse modo, o compartilhamento de filmes em plataformas digitais, como o que é feito por Hugo, pode ser enquadrado como pirataria digital.
Entre as penalidades possíveis que alguém que pratica o ato estão desde impedimento de continuar o uso destes materiais; perda de exemplares ou equipamentos, pagamento de indenizações, multas ou outros valores; e, ter que divulgar informações sobre a ilegalidade cometida e indicar a verdadeira autoria. Também a pessoa pode vir a responder por perdas e danos (morais, materiais e lucros cessantes – o que o titular deixou de ganhar pela obra pirateada). Em casos mais graves pode haver reclusão e detenção.
Segundo Patrícia de Oliveira Areas, doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e especialista em pirataria digital, o fato de lucrar ou não com à pirataria, não te absolve de ser responsabilizado legalmente. O lucro, no caso, só agrava a pena.
Um dos casos mais famosos do Brasil, implicando na condenação por pirataria foi a dos administradores do site Mega Filmes HD, em 2015. O casal Marcos e Thalita Cardoso oferecia um acervo de cerca de 150 mil filmes, séries, documentários e shows. A estimativa, de acordo com a Polícia Federal, era que os dois recebiam R$ 70 mil por mês com as publicidades exibidas no site. Depois de ficarem detidos por 10 dias, ambos foram soltos e o website foi retirado do ar.

Apesar de ser raro acontecer, a lei também responsabiliza o espectador que consome conteúdo pirata, mesmo que seja em menor grau.
“A propriedade intelectual é uma ferramenta de poder”, afirma Patrícia. Para a especialista em pirataria, muitas vezes o acesso à cultura esbarra nas restrições de direitos autorais. É comum não ter acesso a conteúdos que iriam agregar informações importantes para a formação cognitiva, educacional e cultural, devido às dificuldades tanto impostas pelos canais de disponibilização quanto pelos preços praticados. “Essas restrições são reflexos das relações de poder da sociedade. Uma população sem acesso à informação, educação, cultura, é uma população facilmente ‘explorável’”, explica a advogada.
Todos os entrevistados concordaram em pelo menos uma questão: o tema é complexo. Mas para a doutora em Direito, a extinção dos direitos autorais e da propriedade intelectual não iria necessariamente garantir acesso, assim como a existência desses dispositivos não significa que não haverá movimentos que vão tentar transpor essas barreiras.
Inclusive, Patrícia, reforça que é possível usar essas ferramentas legais de forma positiva, sobretudo para garantir o controle de criações populares mais vulneráveis, garantindo a propriedade intelectual sobre conhecimentos tradicionais, patrimônio genético e folclore, como forma de impedir usos ilícitos e apropriação cultural. “É como usar das brechas e ferramentas já existentes para garantir a dignidade humana com justiça social”, explica.
Nos Estados Unidos e Europa, por exemplo, tem-se exceções legais como o Fair Use – que permite o uso limitado de material protegido por direitos autorais sem a permissão do titular, para fins como crítica, comentário, notícias, ensino e pesquisa –, e a regras dos 3 passos, que pondera questões como liberdade de expressão, acesso à informação e função social na hora de julgar os casos. Patrícia explica que, no Brasil, tentou-se uma reforma entre os anos de 2009 e 2010 e seguintes, mas que acabou engavetada. “Então, mais que dizer a pirataria é ‘garantir de acesso à cultura’, é de que forma podemos efetivamente adequar as leis para garantir o acesso à cultura antes das demandas sociais contemporâneas”.
Desaparecimento da memória
No meio da crítica cinematográfica, há uma frase muito repetida: “uma obra não vista, é uma obra que não existe”. A frase não tem um autor amplamente reconhecido por ela, mas ela traz a reflexão sobre o acesso à cultura. Se a arte, para ser arte deve incluir a experiência e interpretação daquele que a vê. Como estará cumprindo seu papel se não está nas mãos da população.
Isso não se aplica apenas a filmes antigos e independentes. Em maio deste ano, por exemplo, a Netflix anunciou a retirada do especial interativo Black Mirror | Bandersnatch do seu catálogo. Para além de gostar ou não da obra, isso mostra como no mundo dos streamings, obras inteiras podem sumir. E não é apenas a gigante vermelha que removeu conteúdo original, já que há relatos da HBO Max e Disney + removeram conteúdos significativos. Ou seja, todos os esforços das pessoas que trabalharam nessas obras, das diárias para filmagem, do trabalho árduo no set podem simplesmente sumir com “um clique”, caso alguém deseje. E se essa obra não estiver disponível em outro streaming, esteja disponível em mídia física ou tenha sido pirateada, talvez não haverá outras formas de acessá-la.
Um outro exemplo disso é Amor Maldito (1984), de Adélia Sampaio – a primeira cineasta negra do Brasil a dirigir um longa. Com temática LGBTQIAPN+, o filme histórico não está disponível em nenhuma plataforma de streaming, porque não há interesse comercial em exibi-lo. Ele só pode ser visto, porque a própria Adélia quem publicou a obra no YouTube, em um gesto quase de sobrevivência para que sua história não fosse esquecida. Mas e quando o artista não tem domínio da sua obra, pois está no controle de alguma gigante estrangeira?

Talvez diversos filmes como Amor Maldito poderão desaparecer da memória coletiva, simplesmente por não terem sido conservados ou por não serem considerados importantes para colaborar no catálogo de alguma empresa.
No fim das contas, os usuários continuam reféns do que as plataformas consideram interessante manter e descartar de seus catálogos. E, por mais complexa que seja a discussão sobre a pirataria, ela não deixa de ser um sintoma social, ao exercer um papel de contraposição ao controle das corporações, fazendo com que o poder de escolher o que se quer prestigiar não fique restrito a poucas mãos ou a um emaranhado de algoritmos.
“Cultura é poder, e onde tem poder, não tem vácuo”, resume o professor de Cinema Lucas Ness. “Se a gente não empoderar as pessoas da cultura delas ou de outras possibilidades, alguma coisa vai ocupar esse espaço e provavelmente alguma coisa que vai oprimi-las”, resume.
*Nomes fictícios para proteger a identidade das fontes
Reportagem de Yuri Micheletti


