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Eglê Malheiros: passado, presente e muito futuro

Em entrevista ao Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS/SP) sobre a realização do filme “O Preço da Ilusão”, primeiro longa de ficção rodado em Santa Catarina, em 1957, Eglê Malheiros, lá nos anos 1980, naquele momento da chamada “reabertura democrática”, disse algo como: “Eu só espero que algum pesquisador do futuro que venha a ouvir isso esteja trabalhando no cinema nacional em condições inteiramente diversas das que nós trabalhamos e, inclusive, das que se trabalha hoje em dia. Que o cinema brasileiro seja uma realidade, um cinema que expresse, discuta, reflita e interrogue a respeito do Brasil. E que não esteja na situação em que ainda está, tendo que conquistar um espaço que é dele em relação à produção que vem de fora”. 

Eglê é autora, junto com Salim Miguel, do argumento de “O preço da ilusão”. Também com Salim e, ainda, com a parceria de Emanoel Santos, escreveu o roteiro do filme. A primeira mulher roteirista de cinema de Santa Catarina. Armando Carreirão era o produtor. Eram, então, junto a outros membros do famoso e vanguardista Grupo Sul – espaço onde Eglê também era a única mulher presente e constante, lá dos idos anos 1940 e 1950 – os cineastas, os artistas “agitadores” de Florianópolis. Dialogavam com outros cineastas brasileiros, estavam ligados nos debates sobre o Cinema Novo que estava chegando. Tinham fundado cineclubes, assistiam ao neorrealismo italiano aqui da Ilha de Santa Catarina, ainda cercada de conservadores por todos os lados. Ousavam. 

O filme não foi o sucesso que esperavam. Mas, foi. Sim, pois sucesso dentro dos moldes atuais não cabe para medir o impacto que teve rodar um filme em Florianópolis em 1957. Como disse Eglê: “Foi o fracasso mais criativo e multiplicador da minha vida˜. Ela, Eglê, comunista desde muito jovem, militante coerente até o fim da vida (faleceu em dezembro de 2024, aos 96 anos), sempre teve o olhar atento a um horizonte de ampla transformação social. E sabia o peso da arte, do cinema, para o acontecimento deste futuro que almejava como militante e que construía coletivamente. Ela entendia o papel social da arte. E muito bem. 

Roteirizou mais filmes. “A Cartomante” (1974), adaptação da obra de Machado de Assis, em parceria com Marcos Farias, também diretor da obra, e Salim Miguel; e “Fogo Morto”(1976), adaptado do livro de José Lins do Rego, também em parceria com Marcos Farias. Cursou Mestrado em Comunicação pela UFRJ, nos anos 1970, e escreveu sua dissertação sobre o processo de adaptação de “Fogo Morto”. Ali, na dissertação, conjugando a roteirista e a pensadora do país, deixou também registrados ideais de um cinema engajado, transformador. 

Quando lançou, em meio ao processo de redemocratização do país, um presságio para dias melhores para o cinema brasileiro, Eglê sabia das dificuldades que o processo histórico de um país dito “subdesenvolvido” como o nosso enfrentaria para avançar. Ela já tinha vivido bastante: tinha passado pelo Estado Novo (e denunciado os abusos daquele período), tinha sido vítima da ditadura civil-militar imposta no golpe de 1964, presa por conta de sua militância, impedida de continuar no magistério. Professora de História, destacava o papel do imperialismo estadunidense no sufocamento da América Latina, incluindo aí um sufocamento narrativo e de linguagem, um sufocamento do cinema. 

Quando chegamos em sua casa, em Brasília, em outubro de 2021, para entrevistá-la para o documentário “EGLÊ” (82 min, 2023), que realizamos com recursos do Prêmio Catarinense de Cinema 2019, através dos chamados Arranjos Regionais, edital de política pública que aplica recursos do Governo Federal, através do Fundo Setorial do Audiovisual (Ancine/BRDE), ela, aos 93 anos, estava plenamente consciente do momento que vivíamos. Era novamente um período de silenciamento dos artistas. Era o governo Bolsonaro. Contamos a ela que, mesmo selecionadas no edital, demoramos dois anos para receber os recursos, pois Bolsonaro congelou as ações da cultura. “Novidade!”, ela disse, irônica. 

Éramos uma equipe só de mulheres, para homenageá-la simbolicamente e na prática. E ela comemorou. Sabe que abriu caminhos para nós, mulheres, no mundo do cinema. Sabe que o percurso é longo, mas que alguns passos já foram dados. “Que equipes de mulheres não sejam só homenagens específicas ou o excepcional, mas uma realidade concreta”, novamente lançou o futuro.

Eglê deixou uma marca de coerência e persistência. De olhar para o futuro, mas agindo, sempre, no presente. Deixou esperança e exemplo.  Que seja uma realidade concreta, Eglê, o fortalecimento do cinema brasileiro e das mulheres trabalhadoras deste cinema. Vamos construir sempre acompanhadas do seu olhar: do passado, do presente e, sempre, do futuro.

Ensaio por Adriane Canan

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