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Kleber Mendonça me jogou na psicanálise

Kleber Mendonça Filho é conhecido por trabalhos como Bacurau (2019) e O Som ao Redor (2012), além do pouco conhecido curta-metragem Vinil Verde (2004). Ao assistir ao filme, me senti confuso, perturbado, boquiaberto, espantado com as emoções que fervilhavam em mim. Foi algo parecido ao que senti quando assisti Cidade dos Sonhos (2001) pela primeira vez ou até o Funeral das Rosas (1969) – filme experimental japonês que faz uma releitura de Édipo Rei. A inquietação por assistir algo que você não entendeu plenamente, provocando um forte impacto sensorial até no inconsciente, me motivou a explorar esse universo. E Vinil Verde acabou me movendo para a Psicanálise.

Antes de continuar o texto, recomendo assistir o curta, pois não irei me conter em relação aos spoilers. O filme tem aproximadamente 16 minutos e pode ser encontrado gratuitamente no YouTube. Se você não se importa em saber o desfecho da narrativa, fique à vontade para continuar.

O filme é uma fábula macabra para crianças, com ar de lenda urbana brasileira. Feito inteiramente com fotos, a direção de Kleber consegue trazer tensão, estranhamento e até humor, a partir da forma como se dão os zooms e a edição das imagens ao posicioná-las para dar impressão de movimento. Nele somos apresentados pelo narrador a duas personagens sem nome, chamadas apenas de Mãe e Filha. As duas vivem em um apartamento em uma relação de monoparentalidade que parece ter muito carinho, amor e cuidado.

Mas o que me levou a começar a estudar psicanálise nesse curta? O que tem haver essa história de mãe e filha com Freud? Depois de vê-lo me deparei com uma pequena review no Letterboxd que deixou mais claro o que eu havia percebido no filme. Nela o usuário comparou o desfecho e os acontecimentos do curta com o conceito de morte simbólica dos pais na Psicanálise.

Esse conceito diz, de forma bem resumida, que precisamos “matar” nossos pais para sermos nós mesmos plenamente. Aqui, matar diz respeito ao ato de romper com os papeis de pais e filhos. Não desconsiderando a importância dessas figuras para o desenvolvimento da criança, mas colocando que, em algum momento, elas devem ser superadas para que possamos seguir sozinhos. E Vinil Verde usa do terror para comentar esse rompimento com a figura materna.

O filme mostra esta mãe e filha em suas rotinas, até que em um dia a mãe resolve dar um presente para sua filha: uma caixa com um toca discos e vinis coloridos com músicas infantis. Mãe diz a Filha que ela pode ouvir qualquer um dos disquinhos, com exceção do vinil verde. Em hipótese alguma a filha deveria tocar o disquinho daquela cor. A menina concorda e as duas se despedem carinhosamente para a mãe poder ir trabalhar.

Em um ato de desobediência, curiosidade e impulsividade, a filha corre para colocar o disco verde imediatamente após a porta ser trancada. A música tocada pelo disco tem acordes de violão acompanhados de sons de um chocalho e um sintetizador inquietante. A letra é tal como várias músicas de ninar sombrias que temos no Brasil: –“Somos as luvas verdes, a gente vem te pegar”.

Ao anoitecer, Mãe volta para casa com um braço faltando. 

Seria um disco maligno? Um pacto que a mãe fez? Coincidência? Não importa. Perde-se a graça tentar encontrar a lógica na fantasia, pois não é algo explicado. Assim, percebe-se o tom de lenda que o filme pretende trazer. Nesta hora eu já estava entregue a quaisquer surpresas e absurdos que Kleber poderia entregar neste curta. E ele dobra a aposta nos minutos seguintes…

Desconstrução de mãe

Ao amanhecer, a rotina continua, mãe e filha tomam café e assistem televisão juntas, com a filha deitada no colo da mãe. O cafuné dado já não era o mesmo. Novamente, Mãe vai trabalhar e diz à Filha para não escutar de forma alguma o vinil verde. E a filha mais uma vez desobedeceu.

Mãe volta à noite faltando outro braço e agora, nas manhãs que antecedem a despedida das duas, não há mais cafuné. Filha tem que dar comida na boca de Mãe e ajudá-la com aquilo que não pode mais fazer sozinha. Nessa hora o narrador do filme diz: -“Filha se sentia agora um pouco mãe”.

Olhando simbolicamente a perda dos membros de Mãe ao longo da história, é como se a Filha conhecesse diferentes versões de Mãe. Literalmente desmantelando por partes a ideia que ela tinha da mãe. À exemplo de quando percebemos que nossos pais não são aquilo que idealizamos, mas sim são pessoas cheias de defeitos, contradições e inseguranças. Neste momento, a visão que Filha tem de Mãe passa a não ser mais a mesma, assim como o cafuné.

Quando mostrei a meus amigos esse curta, uma das primeiras questões foi o porquê da Filha ter continuado a escutar o vinil verde depois de ter vi

Cena do curta Vinil Verde de Kleber Mendonça Filho – Foto: Reprodução/YouTube

sto as consequências. E claro que olhando racionalmente, não faz sentido. Mas quando se compra ideia fantasiosa do curta, é possível entender que não é a desobediência pela desobediência. 

Em uma aula do psicanalista Marcelo Veras, é dito que uma das primeiras palavras que foge do superego – instância do aparelho psíquico que designa a moral e os valores de sociedade, ou seja, que nos impede de fazer algo que vamos sentir culpa ou vergonha –, é a palavra “não”. A negação de um objeto, desse modo, pode induzir ao desejo por ele.

Filha escutando o vinil verde abdica das regras impostas, aquilo que as figuras de autoridade que passaram por nossas vidas sempre falaram que era errado ou não era aceitável. É um ato de transgressão que não só podemos traçar paralelos com o início da adolescência – na qual passamos a questionar ideias de nossos pais que antes eram tidas como sólidas – até a consolidação da vida adulta.

Filha passa por uma jornada que pode ser comparada ao desenvolvimento humano – Foto: Reprodução/YouTube

Nesta mesma aula de Veras, por exemplo, ele ressalta a importância da “arte da transgressão e a força do desejo” em um mundo de regras e de normas, seja esse desejo simplório,  como escutar um vinil verde, ou mais sério tal como sair da casa dos pais.

Nesse sentido, Vinil Verde é uma retratação com contornos surrealistas do desenvolvimento humano. Há até de se pensar na cena em que Filha dá de comer e cuida de Mãe e as questões relacionadas ao ciclo da vida. No qual, nascemos, somos cuidados, nos desenvolvemos e no futuro iremos cuidar daqueles que nos criaram – pelo menos supostamente. 

No terceiro dia, Mãe sai para trabalhar, com a bolsa pendurada no pescoço, se despedindo da filha e falando novamente para que ela não escutasse o vinil verde. Filha concordou e se despediu de sua mãe. E claro, não é preciso dizer, ela escuta o disco verde.

“A vida é perene como a infância”, diz mais um trecho da música.

Enfim, anoitece, e nada de Mãe bater na porta. Dessa vez, o porteiro liga no interfone da casa e avisa para Filha que sua mãe que está esperando no portão. Em uma edição mais lenta, que constroi tensão do momento que a menina abre a porta até sua caminhada ao portão, ficamos ansiosos pelo que não está sendo mostrado. Até que vemos a mulher no chão, sem nenhum de seus membros. Mãe, então, prestes a morrer, faz um último pedido para sua filha, que ouvimos a voz grave e pausada do narrador descrever:

“Mãe pediu que ao longo da sua vida Filha nunca, nunca usasse luvas verdes”.

Vemos a menina chorar por sua mãe no velório e pensando em tudo que sentiria saudade de fazer com sua mãe, como comer mamão no café da manhã ou ver televisão à noite.

Morte da infância

A morte de Mãe é um entendimento da filha de um ser descolado da sua genitora. É uma ruptura semelhante ao que discute-se psicanaliticamente quando o bebê entende que o seio que está alimentando-a pertence a outra pessoa. 

Assim, ela morrendo, é o momento em que a menina pode definir seu caminho descolado da mãe. Uma ruptura difícil, talvez dolorida, mas necessária. 

Na volta do velório, sendo levada de volta para casa, a menina pede para parar o carro e entra em um supermercado atrás de luvas verdes. Ela procura e procura, mas só acha luvas amarelas. Mas a curiosidade (talvez um pouco mórbida) é tanta que ela vai atrás de um funcionário para ver se há luvas verdes. Corta para ela no carro usando as luvas que a mãe havia pedido para não utilizar.

Já em casa, com Filha tentando dormir, começa a tocar a música que ouvimos ao longo de todo o curta em um tom mais macabro. Vemos as luvas verdes que a menina comprou flutuando e avançando até o pescoço dela. Ouvimos um grito e a tela fica preta.

O estrangulamento das luvas verdes induz a pensarmos no primeiro momento que a criança morreu. O que eu posso dizer é que ela pode ter morrido de certa forma. Não literalmente, mas simbolicamente.

A transgressão, as mortes simbólicas da mãe e da infância constituem um caminho operado por Filha e a libertação das crenças estabelecidas pela figura materna. E desse modo ela pode seguir sua vida plenamente, sem a imposição daquilo que foi dito para ela que era verdade ou não. 

Além disso, dessa vez a consequência da desobediência foi exercida diretamente sob Filha. Se antes, Mãe era punida pelos atos da criança, agora sem a mãe, filha deveria lidar sozinha com suas escolhas. Assim, como na vida adulta, nós nos tornamos responsáveis por nós mesmos, sendo beneficiado ou prejudicado pelas decisões que tomamos ao longo de nossa vida.

O filme termina com uma foto estática da filha sendo enquadrada em primeiro plano, com a câmera se aproximando. E assim o narrador diz a seguinte frase:

“Mais tarde ela própria se apaixonou, teve filhos, para eles deu todo seu amor e todos seus medos e mais profundas aflições”.

Para desenvolver-se, Filha mata Mãe. Tudo que ela herda (as aflições, o medo, o amor e, talvez, o disquinho verde) será passado aos seus filhos, que provavelmente terão de matá-la para seguirem o próprio caminho.

Ensaio por Yuri Micheletti

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