Vencedor do Urso de Prata no Festival de Berlim, O Último Azul (2025) lança luz sobre o debate do etarismo e do envelhecimento em meio ao sistema que enxerga o valor apenas na produtividade, e que, no momento em que seu corpo já não produz como antes, a sociedade o descarta. Neste universo criado com riqueza de detalhes pelo diretor Gabriel Mascaro (Boi Neon e Divino Amor) não importa o que você fez e quem você foi, você não dá mais o lucro que você dava para a máquina monetária que não para de girar. Agora você não existe mais.
Mesmo sendo um tema de grande importância na nossa sociedade, sobretudo quando falamos de aposentadoria, direitos humanos e etarismo. A velhice nunca teve o mesmo apelo que a juventude no cinema. É quase como se fosse um grande elefante branco a ser evitado e jogado para baixo do tapete. Não queremos aceitar que vamos envelhecer, tentamos ao máximo parecer mais novos investindo o dinheiro do nosso trabalho em procedimentos estéticos que nos façam parecer algumas décadas, anos ou minutos mais jovens.

A juventude é um objeto de desejo e de grande apelo comercial. Foi algo que ensaiou-se uma discussão um pouco mais aprofundada com as críticas e reações do body horror A Substância (2024). Mas nada que necessariamente tenha esbarrado no tema do envelhecimento e da população idosa. Gerando mais reflexões em aspectos como a pressão estética e o machismo na indústria do entretenimento.

No mundo moderno, o idoso (sobretudo aquele da classe trabalhadora) quase sempre é relegado a um lugar de um passado que não queremos olhar. Talvez até um pária para as elites. Lembro muito bem que durante a pandemia, ouvi algumas “piadas” afirmando que a COVID-19 (que matou mais de 700 mil pessoas no Brasil, dentre elas cerca de 80% idosos) veio para resolver o problema da previdência social. Esses tipos de falas perpassam por um lugar de ódio ao idoso.
Todos nós – a não ser que tenhamos as vidas interrompidas por alguma tragédia – iremos chegar à velhice e nos deparar com as dificuldades físicas, políticas e sociais que ela impõem. Queremos viver num mundo no qual os idosos são escondidos, invisibilizados e esquecidos pela sociedade que ajudaram a moldar?
Por meio da distopia, o diretor Gabriel Mascaro extrapola essa ideia em O Último Azul. Num Brasil aparentemente não muito distante no futuro, o Governo cria uma colônia habitacional para os idosos como forma de fazer uma limpeza geracional na sociedade. Desse modo, idosos com mais de 80 anos são convocados para essa colônia e nunca mais voltam.
Desde o começo Mascaro vai plantando certas informações de como essa sociedade funciona, seja nos anúncios que vemos nos telões, com frases como “o futuro é para todos” ou pichações como “quero meu avô de volta” ou “velho não é mercadoria”.

Tereza (Denise Weinberg), aos seus 77 anos, vive numa pequena cidade no Amazonas, onde trabalha em um frigorífico de carne de jacaré e toma conta de sua vida sozinha. No entanto uma mudança na lei vigente, faz com que a idade mínima para convocação das colônias de idosos passe a ser 75 anos. Com isso, a personagem tem poucos dias de liberdade até ser levada para o exílio.
Os dias contados para perder seu direito de ir e vir, fazem com que Tereza perceba que há muitas coisas que ainda não realizou e tem vontade de fazer, por exemplo andar de avião pela primeira vez. Algo que nunca pôde acontecer, pois Tereza passou toda sua vida trabalhando e cuidando de sua filha (agora já adulta).
Em uma sociedade com fetiche em produtividade, não há tempo de sonhar. E apenas ao ver sua liberdade e seus sonhos se desfazendo diante de suas mãos, é que Tereza decide usar o pouco tempo que há, para realizar seu objetivo de voar pela primeira vez.
No entanto, o que parecia simples vai se complicando, e o que poderia ser um sonho tranquilo de se realizar, vai tendo cada vez mais obstáculos. Logo na primeira tentativa de conseguir uma passagem, ela descobre que chegou em uma idade no qual sua filha vira sua guardiã legal e precisa de autorização dela pra fazer esse tipo de compra. Isso vai ao encontro da ideia do idoso como alguém incapaz, que necessita que necessita de alguém responsável, num processo de infantilização do corpo velho. Quantas vezes já não ouvimos frases que dialogam com essa ideia, como “Depois que envelhece, volta a ser criança”?
É claro que Tereza tenta realizar seu sonho de qualquer jeito e recorre a meios informais. Dando sequência ao que pode ser enquadrado como um road movie (ou seria water movie?) nos rios da região amazônica.
Nesse sentido, há de elogiar a forma como Tereza, assim como Roberta (Miriam Socarrás) – outra personagem idosa que acaba fazendo parte da jornada da protagonista – são construídas. Não existe um estereótipo do idoso incapaz, atrasado e frágil. Muito pelo contrário, Tereza é uma personagem extremamente ativa na sua própria história, sendo persistente, enérgica e até um pouco trambiqueira. Graças a performance de Denise, ela se torna uma personagem fascinante, pelo qual se torce, se chora e se enraivece. Há uma camada de concreto nessa senhora que parece invencível, que se quebra em doçura em algumas cenas. Outras vezes, uma seriedade que se desmonta em plenitude, impulsividade e desejo.

Além de Denise, o elenco de apoio tem performances muito palpáveis e humanas, que junto a uma direção muito eficiente de Mascaro ressaltam a humanidade em meio a imensa natureza. No início da viagem, o diretor faz um plano geral de cima, ressaltando a pequenez do barco em meio ao rio Amazonas, e mostrando a entidade que é essa força da natureza e os caminhos que ela pode levar. Como se a partir do momento em que pisasse no barco e decidisse seguir aquele caminho, seu destino, sua sorte e seus encontros estivessem traçados.
Magia, beleza e futuro
A narrativa de O Último Azul é como um rio, com sua nascente, afluentes e o deságue para caminhos desconhecidos. Gabriel, aproveita muito das paisagens quase celestiais do Norte para contextualizar essa jornada de autodescoberta de Tereza, quase como se fosse um coming-of-age na velhice.
Ali no rio, tudo é cheio de vida e uma dose de realismo mágico. O caracol da baba azul – inventado para o filme – é um animal que mostra o futuro para quem pingar sua gosma nos olhos. O olhar para o amanhã, mesmo com todos insistindo o quanto você é antigo e incapaz, é revolucionário. Algo que não se espera quando falamos de pessoas idosas no cinema, no qual as histórias tendem a ir para uma linha mais melancólica e pouco esperançosa da chegada desse período da vida, como nos filmes Meu Pai (2021) e Amor (2012).

Dessa forma, a beleza de O Último Azul está em mostrar que a vida não acaba na velhice. Há muito a se aprender, realizar e experimentar.
As contradições da velhice
Mesmo com a abordagem mais esperançosa frente à velhice, o filme não cai num tom inocente ou desproporcionalmente positivo. Entendendo todas às dificuldades que vem com o envelhecimento. Em um diálogo de Tereza com Cadu (Rodrigo Santoro), dono de um barco em que a personagem pega carona, ele revela que sua mãe tem tentado ir para as colônias mais cedo do que a idade prevista, pois se sente solitária.
A solidão dos idosos e o abandono dos parentes, querendo ou não, acaba sendo uma realidade mais presente do que gostaríamos de admitir. Antes mesmo do filme de Gabriel Mascaro, Era Uma Vez em Tóquio (1953), de Yasujirō Ozu, abordava essa questão.

Nele acompanhamos um casal de dois idosos que vão visitar seus filhos em Tóquio por alguns dias. Ao chegar na cidade, ao invés de poderem passar um tempo com os filhos, são confrontados com o esquecimento. Ocupados com o trabalho e egoístas demais para enxergar a própria ausência, eles apenas arranjam diferentes desculpas para não estarem presentes nos poucos dias que os pais estão em Tóquio. No caso desse filme, estamos falando de um Japão pós Segunda Guerra Mundial, ocupado pelos Estados Unidos e altamente influenciado pela potência capitalista.
Mascaro não ignora as questões de classe e a exploração do sistema capitalista, deixando isso explícito em tela desde a primeira cena em que vemos Tereza no seu trabalho. Essa tensão de classe paira como um fantasma no filme. A velhice e o status de inválido, tem classe, gênero e cor. Afinal, assim como Roberta diz à Tereza: “você acha que todo velho rico vai pra colônia?”.
Na realidade e na ficção, os idosos ricos – que geralmente são homens brancos – quase sempre estão em uma posição de poder. Quer visitar os filhos? Sem problema, pegue seu motorista particular e chegue na casa deles rapidamente. Seus filhos têm netos? Tranquilo, dá pra pagar alguém pra cuidar deles. Teve complicações físicas? Pague o melhor plano de saúde.
Por outro lado, os idosos de classe baixa e média, normalmente estão numa posição de fragilidade social. A sociedade os isola, os filhos se afastam (provavelmente por causa de uma rotina de trabalho puxada), a saúde depende do tempo que há para ir ao hospital mais próximo; e caso precise que alguém cuide de você, terá que ter a sorte de ter algum parente ou amigo que se preste a essa função.

É claro que estou extrapolando certos conceitos aqui e a realidade é diferente em cada núcleo familiar ou comunidade. De fato, o processo de envelhecer na sociedade em que vivemos é muito mais cruel para quem não tem dinheiro. Mas aqui o diretor joga fora por um tempo essa luz da crueldade para abrir portas para caminhos mais sonhadores.
Em um mundo que valoriza a produtividade acima do humano e o trabalho em detrimento da vida, O Último Azul é uma luz nas histórias sobre o envelhecimento. Nesse filme, a velhice não é uma sentença, é uma continuidade. Mérito ao Gabriel Mascaro e sua equipe, que deram cor, drama, graça e vivacidade à natureza imperfeita da vida.




